A ONDA ROXA EM MINAS GERAIS: ADESÃO OBRIGATÓRIA PELOS MUNICÍPIOS MINEIROS?
Adelson Barbosa Damasceno
Advogado. Mestrando em Direito Público pela Universidade FUMEC- Minas Gerais. Especialista em Direito Público pela PUC Minas.
1. INTRODUÇÃO
No último dia 15/03/2021 o Governador do Estado de Minas Gerais, Romeu Zema, estendeu, para todo o território mineiro, o protocolo de biossegurança sanitária denominado “Onda Roxa”, que consiste na restrição de locomoção de pessoas, fechamento de estabelecimentos comerciais não essenciais e maior rigor no controle da disseminação dos casos de Covid-19.
O Governador, a partir de dados levantados pelo Comitê Extraordinário de Combate à Covid-19, criado pelo Decreto Estadual Nº 47.886, de 15/03/2020, enfatizou a situação de iminência de colapso do sistema de saúde do Estado que abrangeria tanto a rede pública quanto a rede privada.
Aduz, ainda, a falta de equipamentos, leitos e, sobretudo, de pessoal para atuar diante do aumento dos casos de infecção no Estado de Minas Gerais.
Ocorre que na data de 16/03/2021 alguns Municípios, dentre eles Varginha na região sul do Estado, por entenderem que a decisão do Governador do Estado invadia a competência Municipal, optaram por editar Decretos próprios e não respeitar a imposição compulsória da “Onda Roxa”.
No dia 17/03/2021, foi publicado no Diário do Estado de Minas Gerais, a “DELIBERAÇÃO DO COMITÊ EXTRAORDINÁRIO COVID-19 Nº 138” que coloca todas as regiões do Estado em uma faixa mais restritiva pelo prazo de 15 (quinze) dias.
Em 24/03/2021 o Secretário de Estado de Saúde anunciou que esse período mais restritivo deverá ser prorrogado.
Dessa forma, a presente pesquisa busca, a partir da Legislação Estadual verificar se o Comitê Extraordinário possui competência para impor medidas restritivas aos Municípios e se isso fere a autonomia Municipal.
Para responder ao questionamento se utilizará como marco a decisão do Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.343 que reconheceu a autonomia de Estados, Distrito Federal e Municípios para atuação no combate à pandemia do novo coronavírus.
2. DAS COMPETÊNCIAS DO COMITÊ EXTRAORDINÁRIO DE COMBATE À COVID-19 EM MINAS GERAIS
Com o início da pandemia o Estado de Minas Gerais editou o Decreto com Numeração Especial (NE) 113 de 12 de março de 2020 que “Declara SITUAÇÃO DE EMERGÊNCIA em Saúde Pública no Estado em razão de surto de doença respiratória – 1.5.1.1.0 – Coronavírus e dispõe sobre as medidas para seu enfrentamento, previstas na Lei Federal nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020”.
Referida norma se fundamentou nas competências do Governo do Estado que lhe são conferidas pelo art. 90 da Constituição Estadual, bem como na Lei Federal nº 13.979/2020.
Com o reconhecimento da situação de emergência em saúde, o Governo do Estado criou, através do Decreto nº 47886, de 15/03/2020 o Comitê Extraordinário da COVID-19, cujas atribuições iniciais constavam do seu art. 2º, vejamos:
Art. 2º – Fica instituído o Comitê Gestor do Plano de Prevenção e Contingenciamento em Saúde do COVID-19 – Comitê Extraordinário COVID-19 –, de caráter deliberativo, e com competência extraordinária para acompanhar a evolução do quadro epidemiológico do novo Coronavírus, além de adotar e fixar medidas de saúde pública necessárias para a prevenção e controle do contágio e o tratamento das pessoas afetadas. (nosso destaque)
Dentre as atribuições, e aqui destacando aquela afeta ao objeto do presente estudo, está a regra contida no § 2º, a qual dispõe que:
O Comitê Extraordinário COVID-19, com o apoio do Centro de Operações de Emergência em Saúde – COES-MINAS – COVID-19, decidirá sobre a implementação das medidas de que trata o caput de acordo com a fase de contenção e mitigação da epidemia.
Nesse sentido, percebe-se que o Governador do Estado então delega ao Comitê Extraordinário a atribuição de ditar, a partir de critérios técnicos, as medidas de controle da doença no âmbito do Poder Executivo Estadual, conforme determina o art. 1º do referido Decreto e que é, de utilização opcional para as empresas Estatais controladas total ou parcialmente pelo Estado.
Nesse período o Estado também criou o “Programa Minas Consciente” que consiste na constante avaliação e aplicação das medidas determinadas pelo Comitê Extraordinário que se estendem também aos Municípios que vierem a aderir ao programa.
Assim, através da adesão e compartilhamento de informações e dados técnicos à disposição do Comitê, os Municípios que aderissem ao programa estariam obrigados a seguir os protocolos sanitários e as restrições impostas pelo Governo Estadual sendo-lhes facultado apenas complementá-las para impor mais restrições e nunca para enfraquece-las, vejamos:
Ressalta-se, ainda, que os gestores municipais daqueles municípios que tenham feito adesão ao presente Plano, poderão sempre ser mais restritivos, caso entendam pertinente, não podendo ser mais permissivos e mantendo a adesão ao Plano. (Minas Consciente, versão 2021, p. 36, disponível em: https://www.mg.gov.br/sites/default/files/paginas/imagens/minasconsciente/plano_minas_consciente_3.4.pdf)
Tem-se então que em relação aos Municípios que vieram a aderir ao programa Minas Consciente as determinações do Comitê Extraordinário da COVID-19 são de natureza obrigatória, já que se trata de uma opção anterior feita pelo próprio Município.
Ocorre que em 03 de março de 2021 o Comitê Extraordinário da COVID-19 de Minas Gerais editou a Deliberação Nº 130 criando a chamada “Onda Roxa”, que assim dispõe em seus artigos 1º e 2º:
Art. 1º – Fica instituído o “Protocolo Onda Roxa em Biossegurança Sanitário-Epidemiológico – Onda Roxa” como medida específica e complementar de enfrentamento da pandemia de COVID-19.
§ 1º – A Onda Roxa tem por finalidade manter a integridade do Sistema Estadual de Saúde e a interação das redes locais e regionais de assistência à saúde pública, nos termos do art. 188 e do inciso II do art. 190 da Constituição do Estado e do inciso I do art. 16 e inciso I do art. 26 da Lei nº 13.317, de 24 de setembro de 1999, observado o disposto no art. 2º da Resolução da Assembleia Legislativa nº 5.529, de 25 de março de 2020.
§ 2º – A Onda Roxa de que trata o caput será implementada em qualquer localidade do Estado de Minas Gerais em que se fizer necessária, e independentemente da adesão do Município ao Plano Minas Consciente.
§ 3º – Os Municípios, no âmbito de suas competências legislativas e administrativas, deverão adotar as providências necessárias ao cumprimento desta deliberação e de outras práticas, ainda que mais restritivas, identificadas como necessárias ao enfrentamento da pandemia de COVID-19.
Art. 2º – Compete ao Comitê Extraordinário COVID-19 deliberar sobre a adoção, abrangência territorial e tempo de vigência da Onda Roxa nas macrorregiões de saúde definidas pelo Plano Diretor de Regionalização – PDR-SUS-MG, com base nos critérios técnicos e científicos sugeridos pelo Centro de Operações de Emergência em Saúde – COES-MINAS – COVID-19.
Parágrafo único – Excepcionalmente, o Presidente do Comitê Extraordinário COVID-19 decidirá ad referendum os casos urgentes e inadiáveis.
Posteriormente foi publicada a DELIBERAÇÃO DO COMITÊ EXTRAORDINÁRIO COVID-19 Nº 138, DE 16 DE MARÇO DE 2021 que estende a “Onda Roxa” para todas as regiões e cidades do Estado, inclusive para os Municípios que não aderiram ao programa “Minas Consciente” do Governo Estadual.
O art. 188, II da Constituição do Estado de Minas Gerais prevê que “as ações e serviços públicos de saúde no âmbito do Estado integram rede nacional regionalizada e hierarquicamente constituída em sistema único” e que tem como uma das suas diretrizes a “regionalização de ações da competência do Estado”. (MINAS GERAIS, 1989)
Ademais, o art. 190 da Constituição do Estado de Minas Gerais é literal quanto às competências do Poder Executivo Estadual nas ações integradas na saúde, vejamos:
Art. 190 – Compete ao Estado, no âmbito do sistema único de saúde, além de outras atribuições previstas em lei federal:
I – controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a saúde e participar da produção de medicamentos, equipamentos imunobiológicos, hemoderivados e outros insumos;
II – executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica, e as de saúde do trabalhador;
(…)
IX – adotar rígida política de fiscalização e controle da infecção hospitalar e de endemias;
(…)
XI – gerir o fundo especial de reserva de medicamentos essenciais, na forma da lei;
XII – promover, quando necessária, a transferência do paciente carente de recursos para outro estabelecimento de assistência médica ou ambulatorial, integrante do sistema único de saúde, mais próximo de sua residência;
XIII – promover a instalação de estabelecimentos de assistência médica de emergência nas cidades-polo;
(…)
XV – implementar, em conjunto com os órgãos federais e municipais, o sistema de informação na área da saúde.
Tem-se ainda que a Lei 13.317/1999 de Minas Gerais traz como competência da Direção Estadual da Vigilância Sanitária a adoção de medidas de âmbito de todo o território do Estado notadamente em:
Art. 16. Compete à direção estadual do SUS, sem prejuízo da competência dos demais entes federativos, coordenar as ações e os serviços de saúde, executar as atividades de regulação e de auditoria assistenciais e, em caráter complementar à União e aos Municípios, executar as atividades de:
I – vigilância epidemiológica e ambiental;
II – controle de zoonoses;
III – saneamento;
IV – proteção à saúde do trabalhador;
V – vigilância alimentar e nutricional;
VI – oferta de sangue, componentes e hemoderivados e controle de hemopatias;
VII – vigilância sanitária;
A norma em questão ainda traz que o Secretário de Estado de Saúde é autoridade sanitária competente (art. 20) com poder de polícia (art. 22) podendo autuar e interditar cautelarmente qualquer estabelecimento localizado no âmbito territorial da sua competência.
No âmbito federal, por exemplo e já se antevendo às complicações que certamente atingiriam o país, o Presidente da República ratificou, por meio do Decreto Federal nº 10.212, de 30 de janeiro de 2020, o “Regulamento Sanitário Internacional, acordado na 58ª Assembleia Geral da Organização Mundial de Saúde, em 23 de maio de 2005”.
No referido Regulamento consta, do seu Anexo I, alguns pontos importantes e que deram suporte para a atualização da Legislação Mineira, dentre eles o conceito de quarentena, que consta do art. 1º:
quarentena” significa a restrição das atividades e/ou a separação de pessoas suspeitas de pessoas que não estão doentes ou de bagagens, contêineres, meios de transporte ou mercadorias suspeitos, de maneira a evitar a possível propagação de infecção ou contaminação;
Posteriormente o Estado Mineiro editou a Lei 23.631/2020 que replica o mesmo conceito de quarentena em seu art. 2º, I, bem como traz outras determinações que, como poderemos ver mais adiante, dão suporte jurídico para as atuações do Comitê Extraordinário da COVID-19.
Art. 3º Para o enfrentamento da pandemia de Covid-19, poderão ser adotadas pela autoridade competente as seguintes medidas, entre outras:
I – isolamento;
II – quarentena;
III – determinação de realização compulsória dos seguintes procedimentos:
a) exames médicos;
b) testes laboratoriais;
c) coleta de amostras clínicas;
Dessa forma, percebe-se que o Decreto Estadual que outorga a competência para o Comitê Extraordinário da COVID-19 em Minas Gerais se afigura ao instituto jurídico da delegação prevista no Direito Administrativo:
Em algumas circunstâncias, pode a norma autorizar que um agente transfira a outro, normalmente de plano hierárquico inferior, funções que originariamente lhe são atribuídas. É o fenômeno da delegação de competência. (FILHO, 2017, p. 103)
Superada a competência do Comitê Extraordinário da COVID-19 instituído por ato do Governador de Minas Gerais para a implementação de medidas enfrentamento à pandemia, passa-se agora a analisar o alcance das suas decisões em relação aos Municípios.
3. DAS DECISÕES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E O PRINCÍPIO DO PACTO FEDERATIVO
Em agosto de 2020 o Min. Alexandre de Moraes, ao analisar o pedido liminar na ADPF 672, de autoria do Conselho Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, teceu alguns argumentos que interessam na análise da situação atualmente vivenciada no âmbito do Estado de Minas Gerais, vejamos:
A gravidade da emergência causada pela pandemia do coronavírus (COVID-19) exige das autoridades brasileiras, em todos os níveis de governo, a efetivação concreta da proteção à saúde pública, com a adoção de todas as medidas possíveis e tecnicamente sustentáveis para o apoio e manutenção das atividades do Sistema Único de Saúde.
(…)
Por outro lado, em respeito ao Federalismo e suas regras constitucionais de distribuição de competência consagradas constitucionalmente, assiste razão à requerente no tocante ao pedido de concessão de medida liminar, “para que seja determinado o respeito às determinação dos governadores e prefeitos quanto ao funcionamento das atividades econômicas e as regras de aglomeração”
A adoção constitucional do Estado Federal gravita em torno do princípio da autonomia das entidades federativas, que pressupõe repartição de competências legislativas, administrativas e tributárias. Em relação à saúde e assistência pública, inclusive no tocante à organização do abastecimento alimentar, a Constituição Federal consagra, nos termos dos incisos II e IX, do artigo 23, a existência de competência administrativa comum entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios.
(…)
Dessa maneira, não compete ao Poder Executivo federal afastar, unilateralmente, as decisões dos governos estaduais, distrital e municipais que, no exercício de suas competências constitucionais, adotaram ou venham a adotar, no âmbito de seus respectivos territórios, importantes medidas restritivas como a imposição de distanciamento/isolamento social, quarentena, suspensão de atividades de ensino, restrições de comércio, atividades culturais e à circulação de pessoas, entre outros mecanismos reconhecidamente eficazes para a redução do número de infectados e de óbitos, como demonstram a recomendação da OMS (Organização Mundial de Saúde) e vários estudos técnicos científicos(…). (NOSSO DESTAQUE)
No que tange à ideia de federalismo e a autonomia Municipal na escolha de medidas para o enfrentamento à COVID-19, alguns estudos já apontaram para a importância das decisões do STF ao defender as escolhas realizadas pelas autoridades locais, vejamos:
O caminho da consolidação do federalismo pleno — cooperativo —concebido pelo constituinte não é, como visto, propriamente fácil. Nesse cenário, é de se louvar que o Supremo Tribunal Federal tenha passado a admitir algumas boas iniciativas legislativas locais, reconhecendo mesmo a primazia do interesse local em detrimento das reconhecidas competências dos estados e da União. E agora, sob o cenário da pandemia global da Covid-19, o conceito de federação será, como nunca, posto a teste. Como um bom alento, anote-se que o ministro Marco Aurélio reafirmou a competência concorrente para legislar sobre o tema ao deferir parcialmente cautelar na ADI 6.341, proposta pelo Partido Democrático Trabalhista, em face de dispositivos da Medida Provisória 926, de 26 de março de 2020. (BRITTO, 2020)
Ao referendar a medida cautelar na ADI 6.343, o Min. Alexandre de Moraes assim expôs em seu voto:
O direito à vida e à saúde aparecem como consequência imediata da consagração da dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil. Nesse sentido, a Constituição Federal consagrou, nos artigos 196 e 197, a saúde como direito de todos e dever do Estado, garantindo sua universalidade e igualdade no acesso às ações e serviços de saúde. No presente momento, existe uma ameaça séria, iminente e incontestável ao funcionamento de todas as políticas públicas que visam a proteger a vida, saúde e bem estar da população. A gravidade da emergência causada pela pandemia do coronavírus (COVID-19) exige das autoridades brasileiras, em todos os níveis de governo, a efetivação concreta da proteção à saúde pública, com a adoção de todas as medidas possíveis e tecnicamente sustentáveis para o apoio e manutenção das atividades do Sistema Único de Saúde.
Da referida decisão extrai-se ainda que a competência para a definição de medidas relacionadas à saúde e vigilância sanitária, por força do art. 23 da Constituição Federal, são concorrentes entre os entes nacional e subnacionais (Estados e Municípios), vejamos:
Em relação à saúde e assistência pública, a Constituição Federal consagra a existência de competência administrativa comum entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios (art. 23, II e IX, da CF), bem como prevê competência concorrente entre União e Estados/Distrito Federal para legislar sobre proteção e defesa da saúde (art. 24, XII, da CF); permitindo aos Municípios suplementar a legislação federal e a estadual no que couber, desde que haja interesse local (art. 30, II, da CF); e prescrevendo ainda a descentralização político-administrativa do Sistema de Saúde (art. 198, CF, e art. 7º da Lei 8.080/1990), com a consequente descentralização da execução de serviços, inclusive no que diz respeito às atividades de vigilância sanitária e epidemiológica (art. 6º, I, da Lei 8.080/1990).
O mesmo julgado também destaca que a competência para legislar sobre proteção e defesa da saúde é apenas da União e Estados competindo aos Municípios tão somente suplementá-las e desde que haja interesse local.
Nessa altura já se percebe, e sem a necessidade de excessivo esforço interpretativo já que a situação decorre de regra constitucional expressa, que os Municípios, ao suplementarem as legislações federal e estadual, podem fazê-la desde que não venham a infringir os comandos normativos federal e estadual. Ou seja, sua competência normativa é meramente complementar e não concorrente.
Imaginemos uma situação hipotética em que a norma estadual proíba o transporte de animais abatidos em veículos sem refrigeração. Nesse caso é evidente que o Município não pode editar uma norma sanitária que descumpra essa determinação cuja validade é estadual ainda que, eventualmente, o consumo desses produtos venham a acontecer apenas nos limites territoriais da municipalidade.
Da mesma forma, o Município não poderia excluir do calendário nacional de vacinação qualquer vacina mas, poderia, dadas as particularidades locais, incluir determinado imunizante às suas expensas.
A hierarquização, nesse caso, não permite que a União ou Estado possa flexibilizar medida restritiva imposta pelo Município quando amparadas em estudos científicos. Da mesma forma, não pode o Município descumprir as medidas restritivas estaduais a pretexto de violação da competência municipal já que, nesse caso, não atuaria de maneira complementar e sim, concorrente.
Há de se reforçar ainda que a situação decorrente da pandemia não afeta apenas o Município de forma isolada, já que a decisão do chefe do Poder Executivo local pode comprometer o atendimento a cidadãos de outros Municípios isso porque, é diretriz do Sistema Único de Saúde a atuação de forma regionalizada, conforme dispõe a Lei 8.080/90.
Assim, pode o Estado intervir e impor medidas necessárias à integridade do sistema de saúde quando a decisão local vier a colocar em risco o atendimento de outros Municípios tal qual pode a União editar regras a serem cumpridas pelos Estados quando a risco abranger mais de um ente federativo.
Vejamos o que diz o STF na ADI 6.343:
A despeito de se tratar de competência comum e concorrente, a relativa centralização normativa em matéria de vigilância sanitária e epidemiológica decorre do artigo 198 da Constituição, ao instituir o Sistema Único de Saúde – SUS por meio da integração de ações e serviços de saúde em “uma rede regionalizada e hierarquizada”, incluindo-se aí “as ações de vigilância sanitária e epidemiológica” (art. 200, II). A partir dessa previsão, o sistema instituído pelas Leis 8.080/1990 e 9.782/1999 regionalizou e descentralizou as ações sanitárias e epidemiológicas, mas expressamente manteve a cargo de autoridades federais a normatização e a coordenação do sistema nacional de saúde e vigilância sanitária. Ademais, a legislação também permite que a União se ocupe diretamente das ações de vigilância sanitária e epidemiológica em casos excepcionais, que ultrapassem as divisas dos Estados ou tenham dimensão nacional. (nosso destaque)
Nisso também apresenta-se relevante o trecho do voto do Min. Gilmar Mendes na ADI 6.343:
O interesse comum, muitas vezes, inclui funções públicas e serviços que atendam a mais de um município, assim como os que, restritos ao território de um deles, sejam de algum modo dependentes, concorrentes, confluentes ou integrados de funções públicas, bem como serviços supramunicipais.
A situação do Estado de Minas Gerais, pelo menos segundo os últimos relatórios referenciados pela Secretaria de Estado de Saúde do Estado, apontam para um nível crítico de ocupação de leitos em todas as regionais do Estado sendo certo que o descontrole da pandemia, em qualquer cidade mineira, irá impactar ainda mais o sistema de saúde de modo que as decisões individuais de prefeitos geram impactos fora do seu município.
Não se pode distorcer as decisões do STF em relação à autonomia dos entes federativos isso porque a fundamentação dessas decisões, em especial na ADI 6343, aponta para a ausência de hierarquização no combate à pandemia, todavia, busca-se o objetivo primordial de garantir o pleno atendimento à saúde das pessoas, vejamos:
2.A gravidade da emergência causada pela pandemia do coronavírus (COVID-19) exige das autoridades brasileiras, em todos os níveis de governo, a efetivação concreta da proteção à saúde pública, com a adoção de todas as medidas possíveis e tecnicamente sustentáveis para o apoio e manutenção das atividades do Sistema Único de Saúde.
Assim, tanto os artigos 23 e 24 da Constituição Federal, bem como das decisões do STF, defendem a autonomia dos entes para que tenham respeitadas as medidas restritivas por parte dos demais entes desde que amparadas em estudos científicos e sejam levem em consideração interesses locais visando, assim, ampliar a proteção do sistema de saúde.
Todavia, em momento algum a Constituição e o STF conferem a Prefeitos a faculdade de descumprir as diretrizes das autoridades sanitárias federal ou estadual a pretexto de violação da autonomia municipal, especialmente quando essas decisões possam comprometer a integridade do sistema regionalizado de saúde.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sabe-se que existe uma forte campanha contra as medidas de isolamento social, especialmente aquelas impostas pelas autoridades sanitárias e que levam ao fechamento de setores da economia.
É notório que nos últimos dias Minas Gerais e o Brasil vêm confirmando tristes recordes de casos de infecção e morte em decorrência do aumento dos casos de infecção causada pelo novo coronovírus, bem como que existe uma excessiva sobrecarga sobre os sistemas de saúde por todo o país.
Infelizmente também é notório que o Poder Público não se programou de maneira eficiente no combate à pandemia, especialmente não adotou políticas públicas com o objetivo de conter a disseminação da doença, seja pela ausência de coordenação entre as autoridades federal, estaduais e municipais, seja pelo baixo investimento e letargia na abertura de leitos e na aquisição de imunizantes.
Esse conjunto de fatores tem levado à impaciência de uma parcela significativa da população que, de forma justa, busca também exercer o direito ao trabalho como forma de garantir o sustento digno e, assim, buscam, junto aos Prefeitos, medidas sanitárias mais brandas que não inviabilizem o exercício da atividade econômica.
Sensíveis a essa situação e aqui reportando à situação imposta no âmbito do território de Minas Gerais com a “Onda Roxa”, alguns Prefeitos editaram seus próprios Decretos flexibilizando as medidas sanitárias restritivas impostas pela autoridade estadual que, no presente caso, se dá através das Deliberações do Conselho Extraordinária da COVID-19 que é o órgão técnico que estabelece, por expressa delegação, as diretrizes sanitárias no âmbito estadual.
Tem-se que a decisão que coloca todo o Estado de Minas Gerais na chamada “Onda Roxa” encontra suporte em vasta legislação tais como na Constituição do Estado de Minas Gerais, Código de Saúde do Estado, Lei Estadual nº 23.610/2020, da Lei Federal 13.979/2020, art. 23 e 24 e 200 da Constituição Federal.
No que tange às discussões acerca de ingerência indevida na autonomia dos Municípios percebe-se que a jurisprudência do STF, especialmente a partir da ADI 6343, prevê que não existe hierarquização na tomada de decisões por parte de União, Estados e Municípios mas, isso não afasta a necessidade de que hajam atuações de forma coordenada de modo a manter a integridade do sistema de saúde.
Ademais, os serviços de saúde, a rigor da Lei 8.080/90, se dá de forma regionalizada e a competência legislativa dos Municípios em matéria de saúde é meramente complementar e não concorrente.
A autonomia ofertada para Municípios no combate à pandemia, na visão do STF, permite que as autoridades Estadual e Federal respeitem as medidas restritivas, com amparo científico e desde que haja interesse local, voltadas a manter a integridade dos seus sistemas de saúde.
Todavia, isso não permite que Municípios descumpram as determinações sanitárias mais rígidas impostas pelo Estado ante a iminência de colapso do sistema de saúde cujos impactos não se resumem apenas ao Município mas, afetam toda a rede regionalizada do sistema de saúde.
REFERÊNCIAS:
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MINAS GERAIS. Deliberação do Comitê Extraordinário da COVID-19 Nº 138 DE 16/03/2021. Disponível em: https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=411113 Acesso em 17/03/2021
VARGINHA. Decreto Nº 10.300 de 16 de março de 2021. Disponível em: https://www.varginha.mg.gov.br/portal/noticias/0/3/6565/prefeitura-de-varginha-publica-decreto–com-medidas-urgentes-e-obrigatorias-para-o-enfrentamento–da-covid19#:~:text=A%20Prefeitura%20de%20Varginha%20publicou,PANDEMIA%20DE%20COVID%2D19%E2%80%9D Acesso em 17/03/2021.