Michele Rocha Côrtes Hazar
Mestra em Direito Público pela Universidade FUMEC. Especialista em Direito Público pela PUC MINAS. Advogada com atuação em direito público, em âmbito consultivo e contencioso. Autora de diversos artigos científicos.
A título de regra geral, as aquisições de bens e serviços pela Administração Pública devem ser precedidas do devido processo licitatório para que, ao final, seja celebrado o contrato administrativo ou instrumento hábil a formalizar a compra. Tal exigência advém de previsão magna constante no artigo 37, inciso XXI, da Constituição da República de 1988, que assim determina:
Art. 37.
[…]
XXI – ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações. (Grifos nossos).
Para além das disposições fundamentais, é conferido aos entes federados a regulamentação da matéria, sendo privativa da União a competência para legislar sobre normas gerais de licitações e contratos, conforme dispõe o art. 22, inciso XXVII da Constituição da República:
Art. 22.
[…]
XXVII – normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, § 1°, III;
Para melhor compreensão do texto, a citada competência deve ser lida em conjunto com os artigos 146, inciso III, alínea “d”, 170, inciso IX, e 179, todos da mesma Constituição. A se ver:
Art. 146. Cabe à lei complementar:
[…]
III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:
[…]
- d) definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso do imposto previsto no art. 155, ii, das contribuições previstas no art. 195, i e §§ 12 e 13, e da contribuição a que se refere o art. 239.
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
[…]
IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no país. (redação dada pela emenda constitucional nº 6, de 1995)
Art. 179. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei.
Em consonância com a normatização fundamental, em nível infraconstitucional, a Lei Complementar Federal 123 de 14 de dezembro de 2006 institui o Estatuto Nacional da Microempresa e Empresa de Pequeno Porte e, dentre suas inúmeras disposições, confere tratamento diferenciado essas pessoas no que se refere à contratação com a Administração Pública.
Sob essa ótica merece destaque o disposto no artigo 48, inciso I, da citada norma, que traduz o seguinte:
Arte. 48. Para o cumprimento do desejo no art. 47 desta Lei Complementar, uma administração pública: (Redação dada pela Lei Complementar nº 147, de 2014) (Vide Lei nº 14.133, de 2021.
I – deverá realizar processo licitatório destinado exclusivamente à participação de microempresas e empresas de pequeno porte nos itens de contratação cujo valor seja de até R $ 80.000,00 (oitenta mil reais);
A partir de uma leitura simples, pode-se compreender que sempre que a licitação envolver contratações de baixo valor, assim considerado o limite legal destacado, deverá ser dedicada exclusivamente à Microempresas e Empresas de Pequeno Porte. No entanto, a interpretação da legislação deve ocorrer a partir de uma leitura completa e sistemática. Dessa forma, o dispositivo supra referenciado deve ser interpretado em conjunto com a norma contida no art. 49, III da Lei Complementar 123 de 06. A se ver:
Art. 49. Não se aplica o app nos arts. 47 e 48 desta Lei Complementar quando: ( Vide Lei nº 14.133, de 2021
[…]
III – o tratamento diferenciado e simplificado para as microempresas e empresas de pequeno porte não para vantajoso para a administração pública ou representação ao conjunto ou complexo do objeto a ser contratado;
Nessa toada, se a Administração Pública evidenciar que a exclusividade causará prejuízos ou implicará em desvantajosidade da contratação, ela pode dispensá-la. Esse é o entendimento dos autores Jessé Tores Pereira Júnior e Marinês Restelatto Dotti, veja-se:
A Lei Complementar nº 123/06 também afasta a exclusividade para o efeito de subcontratação e de reserva de cota de até vinte e cinco por cento do objeto, quando o tratamento privilegiado mostrar-se desvantajoso para a administração. […] A Administração que realiza licitação exclusiva para entidades de menor porte e consulta proposta vencedora de preço superior ao estimado, nas licitações subsequentes para o mesmo objeto, pode afastar a regra da exclusividade e ampliar a licitação a entidades de médio e grande porte. Essa decisão exige motivação, sobretudo quanto à perspectiva de que a ampliação do universo de competidores produzirá a obtenção de propostas mais vantajosas. Nesta outra licitação, de valor estimado de até R $ 80.000,00, ampliada a entidades empresariais de maior porte […]. (Disponível em: https://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:psxvejR4w5gJ:https://revista.tcu.gov.br/ojs/index.php/RTCU/article/view/149/146+&cd=1&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br).
De suma relevância considerar que é prudente que o exercício avaliativo da Administração Pública, de realizar, ou não, uma licitação exclusiva para Microempresas ou Empresas de Pequeno Porte, seja feito ainda na fase interna da licitação, amparado em avaliações mercadológicas e outros critérios que se relacionem com a própria natureza do objeto a ser contratado.
No entanto, é necessário cautela na leitura e aplicação do procedimento no inciso III do citado art. 49 da LC 123/06. Isso porque dispensar a exclusividade da licitação para Microempresas e Empresas de Pequeno Porto deve ser uma atividade amplamente motivada e constar EXPRESSAMENTE do Processo Licitatório, para que sejam evitados equívocos normativos, ou mesmo o cometimento de fraudes.
Sobre a questão, pertinente é a manifestação do Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso, no teor do Parecer 53/2015, nos autos do Processo 19.396 / 2015. Veja-se:
[…] evitando demora e retrabalho na realização dos procedimentos licitatórios. Nessa linha de entendimento cita-se a jurisprudência do Tribunal de Contas do Estado do Tocantins: RESOLUÇÃO TCE / TO Nº 181/2015 – Pleno (…) O gestor público deve planejar-se, ainda na fase interna, para que se adiante e identifique uma eventual ausência de micro ou pequenas empresas aptas a atender o objeto almejado, bem como justificar exaustivamente tal situação, nos autos do respectivo processo licitatório, a fim de evitar alegações de desrespeito à Lei Complementar nº 123/06, por parte dos órgãos de controle acerca da inobservância das regras regras pelo Estatuto da Microempresa. Tudo no escopo de atender aos princípios da economicidade, isonomia, impessoalidade, publicidade e supremacia do interesse público, dentre outros. (grifou-se) Assim, cabe à Administração licitante aferir, na fase interna da licitação, se não houver nenhum mínimo 03 fornecedores competitivos enquadrados como MPE, sediados local ou regionalmente e capazes de cumprir as exigências obrigatórias no instrumento 7 Disponível em:, pags. 31 a 33. 16 convocatório. Não existindo, aplica-se a regra excludente prevista no inciso II do artigo 49 da LC 123/2006, destinando-se o certificado às empresas em geral. As informações necessárias para a aferição da existência das MPE precisam ser adaptadas ao meio de instituição de cadastros próprios8, pesquisas mercadológicas realizadas junto às entidades representativas de segmentos administrativos (Sindicatos Patronais, Associações de Comerciantes, sites especializados, etc), pesquisas na Junta Comercial do Estado, dentro de outros meios.
Em seguimento e reforço a tal fundamento, não é demais destacar que os atos administrativos, de modo geral, devem ser MOTIVADOS. Nesse sentido, Celso Antônio Bandeira de Mello expõe o seguinte sobre o princípio da motivação:
[…]. dito princípio implica para a Administração o dever de justificar seus atos, apontando-lhes os fundamentos de direito e de fato, assim como a correlação lógica entre os eventos e situações que deu por existentes e a providência tomada, nos casos em que este último aclaramento seja necessário para aferir-se a consonância da conduta administrativa com a lei que lhe serviu de arrimo.” (Mello, Celso Antonio Bandeira de Mello. Curso de Direito Administrativo. 31ª Ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2013, p.115-116; 404-408.).
Portanto, a invocação e aplicabilidade do art. 49, inciso III da Lei Complementar 123 de 2006 deve respeitar a exigência de motivação, ainda na fase interna do procedimento licitatório, sob pena de responsabilização, em eventual ação fiscalizatória, por violação à legalidade positiva e ferimento de outros princípios que norteiam a atividade administrativa.