Artigo: Acordo de não persecução cível nas ações de improbidade administrativa com as alterações do pacote anticrime (Lei nº 13.964/19)

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ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO CÍVEL NAS AÇÕES DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA COM AS ALTERAÇÕES DO PACOTE ANTICRIME (LEI N.º 13.964/19)

Flávia Reis Goz
Advogada. Pós-Graduada em Direito Civil pela Faculdade Arnaldo, Pós-Graduada em Direito Processual Penal pela Faculdade de Estudos Administrativos de Minas Gerais (FEAD) e Graduada em Direito pela Faculdade de Direito de Varginha – FADIVA.

 

A improbidade administrativa pode ser conceituada como o ato ilegal ou contrário aos princípios da Administração Pública e por isso torna-se um conceito elástico, ou seja, de feição mais ampla e protetiva do interesse público.

Essa amplitude e elasticidade, no entanto, encontra seus limites no paradigma do Estado Democrático de Direito, regido pelos direitos fundamentais e inalienáveis do contraditório, da ampla defesa e da isonomia.

Disciplina tratada pela Lei n.º 8.429/92, a ação de improbidade administrativa – editada em um contexto de grave desconfiança que recaía sobre a classe política – tem o objetivo de apurar atos de agentes públicos que possam estar em desacordo com a Lei e com os princípios da Administração, aplicando aos infratores as sanções legais tais como perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, ressarcimento integral do dano (quando houver), perda da função pública, suspensão dos direitos políticos, pagamento de multa civil e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, tudo com o objetivo de preservar a probidade e a moralidade administrativa.

Sob a justificativa de se preservar o interesse público – indisponível na doutrina administrativa clássica -, o art. 17, §1º da Lei n.º 8.429/92 proibia a transação, acordo ou conciliação.

Com o passar do tempo a jurisprudência, doutrina e legislações posteriores (incluindo a Resolução n.º 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça e as Resoluções 118/2014 e 179/2017, ambas do Ministério Público) passaram a estimular a auto composição dos conflitos, ou seja, a celebração de acordos nas ações de improbidade administrativa.

O Código de Processo Civil (Lei n.º 13.105/15) incentivou a utilização de técnicas de solução consensual de processos, tais como a mediação, a conciliação e a arbitragem, com o objetivo de desobstruir o Poder Judiciário e garantir a duração razoável do processo com aplicação subsidiária nas ações de improbidade administrativa.

Além disso, as Leis n.º 12.529/11, 12.846/13 e 12.850/13 regulamentaram o acordo de Leniência e a Colaboração Premiada, permitindo que os envolvidos pudessem colaborar com as investigações em troca de benefícios na aplicação de sanções que lhes fossem impostas ao final de processo.

Mesmo assim ainda estava vigente a proibição expressa de transações na Lei n.º 8.429/92 e questionava-se a possibilidade de celebração de acordos nas ações de improbidade administrativa. De um lado, havia a primazia do interesse público. De outro, a pouca efetividade na devida recomposição do patrimônio público.

Com a vigência do chamado Pacote Anticrime – Lei n.º 13.964/19, além das alterações trazidas na lei penal e processual penal, admitiu-se expressamente a celebração de acordo de não persecução cível nas ações de improbidade administrativa.

Essa nova figura de consensualidade pacificou essa prática, já autorizada pela jurisprudência e no cotidiano do judiciário, apesar das controvérsias. No entanto, não trouxe balizas procedimentais ou informações sobre legitimidade ativa, conteúdo do acordo e os benefícios aos envolvidos para a realização da negociação, em virtude dos vetos presidenciais no art. 17-A e seus incisos e parágrafos.

Ainda que não existam parâmetros claros sobre o procedimento e fase me que o acordo poderá ser celebrado, é importante destacar que o STF, ao julgar o Leading Case RE 852.475 – Tema 897 firmou a tese de que “são imprescritíveis as ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato doloso tipificado na Lei de Improbidade Administrativa” o que pressupõe que o dano, nesse tipo de ação, deverá ser integralmente recomposto.

Mas, na recomposição do valor do dano pode, e certamente haverá controvérsias e nesse caso, embora se trate de um acordo, o respeito ao efetivo contraditório deve ser preservado durante a negociação, de modo que a pessoa jurídica de direito público que eventualmente tenha sido lesada, o autor da ação e aqueles, cuja prática do ato de improbidade administrativa lhe tenham sido imputados, possam, em igualdade de condições e sem qualquer tipo de coação, trazer seus argumentos e chegar a um acordo que seja justo e que preserve os direitos fundamentais de todos os envolvidos.

 

Pode-se concluir que as inovações do Pacote Anticrime – Lei n.º 13.964/19 perpassam a seara penal e se aplicam nas ações de improbidade administrativa de modo a garantir segurança jurídica aos acordos de não persecução cível. No entanto, assim como no âmbito dos acordos e contratos em geral, a coação e a ameaça, enquanto causas de anulação dos negócios jurídicos na esfera privada, se apresentam, nas ações de improbidade administrativa, como graves violações dos direitos fundamentais do contraditório, ampla defesa, direito ao advogado e da isonomia, preceitos fundamentais do Estado Democrático de Direito.